Estamos vivenciando um momento em que o tema “mudanças climáticas” passou a ser parte central das discussões sobre políticas públicas no mundo todo. O conceito de segurança energética usualmente calcado na garantia de suprimento e preços acessíveis, ganhou um novo elemento associado à necessidade de redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Existe um entendimento coletivo de que não é possível manter a estrutura atual sem comprometer o futuro das próximas gerações.
Essa busca por alternativas para mitigar os terríveis efeitos do aquecimento global não permite uma solução universal que possa ser aplicada de maneira irrestrita a todas as nações. Cada país deverá adotar alternativas mais adaptadas às suas características, que inclui a disponibilidade de recursos naturais, a capacidade financeira, a infraestrutura instalada e o domínio tecnológico, entre outros.
Diante disso, chama atenção a condição brasileira. O País é pioneiro no uso de fontes renováveis e dispõe de uma posição única no mundo, com diversas opções para ampliar a produção e o uso de energias limpas.
Atualmente, cerca de 40% da matriz nacional é composta por fontes renováveis, com destaque para a bioenergia que representa aproximadamente 18% do total. Especificamente no setor de transportes, os biocombustíveis também já substituem 10% da necessidade de óleo diesel e cerca de 40% do consumo de gasolina.
Essas cifras foram obtidas sem prejuízo do uso racional dos recursos naturais ou da produção de alimentos no país. No caso da cana-de-açúcar, por exemplo, utilizamos apenas 0,6% do território nacional para o cultivo da lavoura canavieira destinada à produção de biocombustíveis.
A consolidação da posição brasileira e a materialização das potencialidades associadas aos biocombustíveis passam, entretanto, pela necessidade de uma diretriz de longo prazo capaz de direcionar e atrair investimentos na produção nacional.
É nesse contexto que a Lei no. 13.576, sancionada em 26 de dezembro de 2017, se insere. Ao estabelecer a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), o referido instrumento legal propõe um mecanismo arrojado para promover segurança energética e reduzir emissões de GEE.
Inspirado em iniciativas de sucesso em outros países, o RenovaBio se fundamenta em três pilares principais.
O primeiro deles refere-se à proposição de meta decenal de descarbonização para o setor de transporte. Esse instrumento deve definir o nível máximo de emissão de GEE por unidade de energia consumida nesse setor, norteando, dessa forma, a participação dos biocombustíveis na matriz.
A redução de GEE a partir dos biocombustíveis é um dos elementos do compromisso firmado pelo país na 21ª Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas (COP-21). Ratificado pelo congresso e pelo presidente da república em 2016, o acordo passou a vigorar oficialmente e estabelece uma meta de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) de 43% até 2030, tendo como parâmetro os níveis registrados em 2005.
Essa indicação decenal também pode facilitar o planejamento da indústria de petróleo e oferecer elementos importantes para o desenho do regime automotivo ora em discussão no país.
Além disso, o crescimento da produção de biocombustíveis alinhada à diretriz estabelecida pelas metas é fundamental para reduzir as importações de combustíveis, que, diante das políticas públicas erráticas dos últimos anos, superou R$ 26 bilhões em 2017 com a importação de 1,8 bilhão de litros de etanol e de 17,4 bilhões de litros de diesel e gasolina.
Definidas as metas, o segundo pilar do sistema proposto pelo RenovaBio refere-se ao mecanismo de valoração do carbono que deixou de ser emitido no processo de substituição da energia fóssil por energia renovável.
Essa remuneração será dada pela comercialização do certificado de redução de emissões (CBio) emitido na venda do biocombustível pelo produtor. O sistema prevê a compra do mencionado certificado pelas distribuidoras para o cumprimento das metas em cada ano. O preço do CBio, por sua vez, será determinado pelas condições de mercado, com ajustes imediatos realizados em um processo transparente de comercialização em bolsa. Não se tem, portanto, qualquer tipo de subsídio ou alteração na estrutura de tributação dos combustíveis.
Por fim, o terceiro e último elemento do programa estabelece um vínculo entre a eficiência energético-ambiental da produção e a receita que pode ser auferida com a venda de CBios. Ao quantificar as emissões de acordo com o ciclo de vida de cada biocombustível, o mecanismo reconhece as diferentes etapas do processo de produção e comercialização, definindo notas distintas de acordo com as práticas adotadas por cada produtor.
Por exemplo, produtores com reduzido consumo de diesel na produção terão nota de eficiência energético-ambiental mais elevada. Logo, esses produtores poderão emitir um maior número de CBios para cada volume de biocombustível comercializado. Como esse título representa uma tonelada de carbono que deixou de ser emitida, é natural que os produtores mais eficientes tenham maior receita com a venda dos mesmos.
Esperamos que esse estímulo adicional para a ampliação da eficiência ambiental e, como consequência, da eficiência econômica, possa consolidar e viabilizar novos processos, tecnologias e produtos derivados da bioenergia.
No caso do etanol, a indústria já mostrou ao longo de sua história que consegue responder de forma contundente e eficiente a estímulos na direção correta. Após a criação do Pró-alcool, a produção de cana-de-açúcar apresentou crescimento próximo a 200% em menos de 10 anos. Movimento similar ocorreu na década de 90, quando o acesso ao mercado internacional de açúcar permitiu um aumento superior a 40% da produção. Por fim, mais recentemente, o surgimento do veículo flex garantiu que a oferta brasileira dobrasse em menos de 10 anos.
O fundamental é que esse crescimento foi acompanhado por uma queda expressiva no preço do produto. A partir da Figura 1 é possível verificar que, fruto dos ganhos de rendimento e produtividade, o valor do etanol comercializado pelos produtores hoje é um terço daquele observado no início do Pró-álcool.
Figura 1. Preços do etanol anidro comercializado pelos produtores e evolução da produção brasileira de etanol.
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados da UNICA e MAPA.
Nota: preços em valores reais de janeiro de 2018, com o uso do IGP-DI como deflator.
Movimentos similares poderão ser observados no futuro próximo. A despeito da limitação de curto prazo imposta pela atual condição das empresas em decorrência da crise vivenciada nos últimos anos, essa indústria conta com uma série de opções para saltos de eficiência energética, ambiental e econômica no médio e longo prazos.
Apenas para citar alguns exemplos, na área agrícola as empresas estão introduzindo variedades mais adaptadas ao sistema produtivo, maquinários com maior eficiência operacional e com economia no consumo de diesel, e ferramentas de agricultura de precisão com eletrônica embarcada, dentre outros. Observa-se ainda o emprego de novas tecnologias de plantio, como o uso de mudas pré-brotadas, e a sinalização de possível ruptura tecnológica diante do desenvolvimento da semente artificial de cana-de-açúcar.
A cana-de-açúcar transgênica resistente a insetos também deverá ser uma realidade comercial nos próximos anos. Variedades com maior tolerância a seca, maior produção de açúcares e maior eficiência fotossintética estão sendo avaliadas.
A valorização da emissão de GEE evitada pelo etanol também pode ser decisiva para a ampliação da produção de bioeletricidade a partir da adoção de sistemas de aproveitamento da palha, incluindo técnicas de recolhimento no campo e de processamento nas indústrias. Na mesma linha, estão os estímulos à produção de biogás e biometano a partir dos subprodutos do processamento industrial.
Isso sem contar o ganho de eficiência associado ao uso otimizado da tecnologia já existente, com o maior nível de renovação das lavouras, o restabelecimento dos tratos culturais e a reposição da frota e dos equipamentos utilizados na produção. Essas medidas foram severamente comprometidas nos últimos anos em função da crise no setor.
É preciso entender que a falta de planejamento observada no setor de combustível na última década levou ao fechamento de quase uma centena de usinas, à deterioração da situação financeira da Petrobrás e à dependência de combustível importado para garantir o suprimento interno. Essa condição não é consistente com a situação brasileira, caracterizada pela diversidade energética e pelo enorme potencial de expansão sustentável dos biocombustíveis.
A aprovação da Lei do RenovaBio estabeleceu um primeiro passo para a reversão desse cenário na indústria da bioenergia. O sucesso do programa dependerá da efetividade do longo processo de regulamentação, que precisa ser pautado pela transparência, pelo debate construtivo e por critérios técnicos visando minimizar os custos de transação do modelo, garantir segurança energética e reduzir as emissões de GEE.
O uso dos biocombustíveis é uma alternativa real, economicamente viável e prontamente disponível para suprir de forma sustentável a demanda crescente do mercado nacional. Esperamos que essa opção possa ser utilizada efetivamente como uma das medidas necessárias para que o País volte a surfar na vanguarda de um movimento mundial irreversível, orientado pela economia de baixo carbono.